Daquele sorriso qualquer

Foto: Alexandre Valério Ferreira.

Autor: 

Alexandre Valério Ferreira



  Meu olhar corria de medo. Procurava ancorar em algum espaço entre cabeças e braços. O ônibus parecia navegar em mares revoltos, com aquele vai-e-vem constante. Mas, eram apenas uma congestionamento de alguns quilômetros. Nada incomum.
  Eu estava com o celular descarregado. Maldição! Castigo? Não, consequência de uma pressa desnecessária. Esqueci de carregar ontem a noite pois estava com pressa para dormir, a fim de acordar apressadamente para o serviço hoje. 
  Não sou alguém com um grande emprego. Não tenho a vida calma de um engenheiro. Mentira! Engenheiros não tem vida tranquila... Afinal, quem tinha naquela construtora? Nem o nosso patrão. Pobre coitado que tinha de escolher onde investir seu pequeno capital.
  Como um bom trabalhador sofrido, preciso tomar um ônibus todo dia. E, hoje, era um dia útil (afinal, feriados são dias inúteis). Peguei uma daquelas latas de sardinha humana com rodas as quais teimosamente os governantes insistiam de chamar de "transporte público". Amo piadas, mas essa é muito sem graça. De qualquer forma, era suportável e me economizava bastante.
  Bem, tudo corria com a mesma mesmice de sempre. Até que entre o cotovelo fino de um moleque e a cabeça de um velho sem pentes, eu vi um sorriso. Ele estava emoldurado por doces e belos lábios vermelhos. Eles cintilavam vida em meio àquele descolorido horário de desesperança. 
  Eu não conseguia ver de quem vinha aquele sorriso. Ele era leve como o daquela pintura de Da Vinci. Qual era o nome mesmo? Monalisa? Acho que sim. Havia uma grande similaridade entre as duas. Talvez fosse a sutileza. Sorrisos discretos possuem uma beleza peculiar. Não sei explicar. Não sou pensador.
O sorriso daquela moça me separou daquele mundo. Milhares de questões vieram a minha mente. Seria ela solteira? Estaria feliz de verdade? Por que estava tão bem arrumada (como se eu soubesse algo além daquele batom vermelho que ela usava)?
  Perguntas e mais perguntas. Algumas profundas. A maioria, sem respostas. Curiosidade. Queria entender ao menos por que ela sorria. O que havia naquele transporte coletivo que a fazia se sentir bem? Haveria alguém especial perto dela? Pelo que vi, não. Então, o que seria? 
  O tempo foi passando. O sorriso era teimoso. Desaparecia, mas tornava a iluminar minha noite. Quem seria ela? O que ela fazia aqui? Não merecia estar em um transporte coletivo. Mas, afinal, quem merece ficar amotinado como caixas em um porão de um velho navio? Ninguém, eu sei.
  Os braços se moviam. Bíceps se contraíam tentando sustentar o corpo contra a inércia que os jogava para frente e para trás. Mas, nem mesmo aquele navegar urbano fazia com que aquela discreta moldura entre os lábios perdesse sua beleza. 
  Eu já desistira de saber de quem era. Não iria importunar ninguém. Não sou um sem vergonha machista. Basta a poesia daquele sorriso. Só precisava daquela ponta de esperança para meu dia terminar um pouco melhor. Afinal, se ela conseguia sorrir perdida naquele mar de suor e braços, por que eu não conseguia? Sempre nos achamos incapazes daquilo que desejamos fazer. 
  Sorri. Desci na minha parada. Mandei um 'adeus' mental para aquela senhor[it]a que no ônibus permanecera. Não vi seus olhos em momento algum. Será que eram tão belos e discretos como aquele sorriso? Não preciso nem responder.



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