Diário do Orelhão

Telefone público. Imagem: Autor.


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Eu chamava, chamava e chamava. Mas, ninguém me atendia. Os pedestres viravam o rosto em minha direção, olhavam por alguns instantes, e tornavam a seguir seu caminho. A ligação não era para ele. Como poderia ser? Afinal, sou um telefone público. Sou um orelhão.
  Tenho apenas uma orelha. Meu ouvido está no meu interior. Eu funcionava através de cartão. Entretanto, a muito tempo os aboliram. Gostava deles. Tinham diversos tipos, com fotos de lugares históricos, animais e da natureza em geral. Bons tempos da Telebrás. 
   Dizem que sou público. Pertenço a todos. Ao mesmo tempo, ninguém me possui. Atendo a todos que de mim precisam. Faço ligações. Protejo os usuários com minha orelha de abano. Escuto o que eles tem a dizer. 
   Minha orelhona é como um museu. Conta histórias. Possui marcas. São números de telefone, declarações de amor, piadas obscenas e frases religiosas. Há de tudo um pouco. As marcas são pancadas dos vândalos ou dos que se esquecem de abaixar a cabeça antes de sair da minha cobertura. Pobres criaturas, saem cambaleando como bêbados.
   Ah! Por que lembrei dos bêbados? Tiram-me do do gancho e falam com seus amores perdidos, com a central da polícia ou com sua consciência. Carentes de atenção e, talvez, de objetivos, encontram em meu ouvido um ombro amigo.
   Volto a tocar. Chamo por um ouvido disposto. O seu Manoel, que mora aqui do meu lado, resolve atender. A pessoa do outro lado da linha pergunta se ali é a Cidade 2000. Seu Manoel responde que não. Estamos no Jacarecanga. Ligação errada. 
   Posso até ser propriedade pública, mas, de fato, pertenço a algumas pessoas de forma fixa. Dona Júlia me tem como seu telefone particular. Cobradores de cartão de crédito, familiares do interior, amigos e serviços de doações sempre ligam para meu número pensando que é da casa dela. Como saberiam que não sou particular? 
   Como um bom ouvido; escuto a tudo e a todos. Muitas histórias eu poderia contar. Algumas, eu já esqueci. Digo, porém, que alguns eventos são por demais recorrentes. Sempre tem um marido sem-vergonha que liga para a amante, um moleque que faz trote para a polícia ou alguém que fica fazendo declaração de amor para dezenas de paixões. Ser humano é bicho estranho. Complicado tentar explicá-los. 
   Sei que meus dias estão findando. Gradualmente estou caindo no esquecimento. Minhas orelhas funcionam apenas como abrigo ou como papel de recados para os vizinhos. Estou sem manutenção a algum tempo (acho que a quase 1 ano). O celular ocupou meu papel. 
   Mas, esta é a vida dos aparelhos. Somos feitos para necessidades imediatas. Nossa vida é descartável. Mesmo quando cumprimos um papel muito mal feito por outros humanos, não podemos convencê-los a continuar. Agora, me dê licença, pois tenho uma ligação para receber...


De Alexandre Valério Ferreira 




 

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