Diário da Faixa de Pedestres

Imagem: wallpapercave.com

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Isso é um desabafo, não um diário. Desculpe-me pelo título mentiroso. Porém, não desejava usar um título apelativo. Também não queria dar a ideia de um texto melancólico, triste, sem graça (mesmo que talvez ele pareça ser).
   O problema é que, às vezes, eu sinto como se não existisse, sabe? Não sei explicar muito bem. Eu apareci naquela avenida a um bom tempo. Ela cruza com outra via muito movimentada. No horário de rush, você não tem (ou talvez tenha...) noção de como o trânsito é uma desordem aqui. 
   Mas, não reclamo do trânsito. É um efeito esperado do aumento contínuo de carros na civilização humana. Nada resolve o problema do transporte particular. É um buraco sem saída. Infelizmente, nem todos me escutam. Aliás, quase ninguém me escuta. Estou farto disso. Se eu fosse capaz de beber, eu certamente estaria num bar. Mas só recebo água e, quando esta vem, costumo ficar submersa. Desculpa, a minha vida é triste e sem graça. Queria ser diferente.
   Talvez se eu fosse faixa de uma zebra, quem sabe não teria mais felicidade? Viver nas savanas africanas, ah, um sonho pra mim. Porém, estou aqui: parado e esquecido pelos meus criadores. 
   Os seres humanos dizem que sou uma espécie de sinalização. Eles me contaram que as pessoas que por mim atravessassem estariam a salvo do perigo. Eu as protegia. Incrível, não acha? Só não me contaram que era tudo mentira. A demagogia deles me iludiu por um tempo, até a via ser aberta ao trânsito.
   Os carros me veem, mas não me enxergam. Param em cima de mim sem vergonha nenhuma. Aceleram quando os pedestres passam por mim, tentando apressá-los ou assustar as senhoras idosas. E me confundem de vez em quando com estacionamento. Sou tudo para eles, menos uma faixa de pedestres. Não tenho identidade.
   Já no que se refere aos pedestres, ah, estes são uma dor de cabeça. Parece que me odeia. Julgam-me inconveniente, o "certinho" que sempre exige que sigam as leis. Sou o careta, que nunca estou perto do trecho em que eles querem atravessar. Eles me xingam por estar mal pintada ou por ser demasiadamente longa. Convenço a poucos de minha utilidade. E, quando eles tentam fazer o que digo, vem um motorista desrespeitoso e infantil para quase atropelá-los. 
   Digo para o sinal de trânsito que deveriam extinguir o sinal amarelo. Ele é uma ilusão. Para nada serve além de induzir os motoristas a acelerar antes do semáforo "fechar". Em consequência, os pedestres ficam decepcionados comigo e deixam de confiar no meu papel social.
   Todos são culpados. É um ciclo vicioso, onde cada pessoa desculpa seus atos através dos erros (ou possíveis erros) dos outros. É sempre "os outros". Nunca é culpa dela. Essa habilidade de se iludir é incrível. 
   Novamente, peço desculpas por minha lamúria. Se que não é sua culpa, você também sabe. O problema são os outros, não é verdade? Que bom que você, meu querido pedestre/motorista, respeita as leis de trânsito. Obrigado


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De Alexandre Valério Ferreira


 

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