Diário da Escada
Degraus. Fonte: outraspalavras.net |
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SER uma escada é uma tarefa árdua. Em constante uso, preciso estar sempre em bom estado. Meus degraus devem ser bem projetados, de forma que permita a maior estabilidade possível para o usuário. São necessários pisos antideslizantes. Um corrimão é sempre bem vindo. Em alguns casos, obrigatório.
Na minha vida, aprendi muito sobre o comportamento dos humanos. Eu tenho um importante papel na vida deles. Sou um facilitador: torno acessível o translado para planos com grande diferença de altura. Sem minha presença, talvez fosse necessário escalarem ou utilizarem rampas extremamente longas.
Vale destacar que não diminuo a força da gravidade, nem modifico a energia potencial gravitacional. Na verdade, eu apenas parcelo a energia, de forma tal que cada degrau permite que um ser humano comum e saudável consiga ganhar energia potencial gradualmente. Um salto de grandes alturas é impossível para o ser humano. Seu corpo não suporta (ainda mais na era do sedentarismo).
Meu trabalho é digno e, por isso, ele se tornou ilustração para diversos ensinamentos. No mundo dos negócios, sempre há referências a minha ilustre pessoa. E qual humano que nunca escutou o seguinte conselho: um degrau de cada vez?
Ainda assim, eu me surpreendo com algumas atitudes dos seres ditos superiores. Vez por outra, um deles insiste em pular degraus. Outros, em sua possível arrogância, renegam os limites da física e não possuem fé no atrito e na força gravitacional. Tentam correr de forma tal que se machucam. Quedas em minha estrutura pode ser fatal. Cuidado!
Para auxiliá-los, forneço-lhes meus braços, os corrimãos. Alguns, entretanto, fingem que não o veem ou tentam enganar-se por achar que não precisam deles. Um tropeço pode fazê-los mudar de ideia, mas, nem sempre. Para determinados humanos, reconhecer que errou, mesmo para um público que habita apenas em seu imaginário, é demais humilhante. Se ao menos ele enxergassem a forma como muitos veem sua ignorância...
Tenho um defeito: sou inflexível. Não aceito caminhos fáceis. Não compreendo as limitações humanas. Meu nível de acessibilidade é muito baixo. Admito: queria ser diferente. Talvez eu possa me tornar mais acessível. Depende tudo do governo, dos arquitetos e dos engenheiros. Quem sabe um dia eu seja um misto de escada/rampa? Quem sabe?
Por hora, vivo a observar os pés que sobem e descem sobre meus degraus. Alguns estão apressados. Outros, debilitados. Há sapatos, tênis e sandálias. Estas, sempre prendendo-se entre os degraus, arriscando seus pobres e apressados usuários.
Costumo atrair os cansados. Eles, exaustos, encontram em mim um banco, ou melhor, inúmeros bancos. Aliviam suas pernas do percurso que ainda tem de atravessar. Sou uma escada alta e trabalhosa. Perdoe meu orgulho, mas é a verdade. Ainda assim, posso ser uma fonte de atividade física. Talvez, a fuga deles do tão atraente e doentio sedentarismo.
De Alexandre Valério Ferreira
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