Diário da Lagoa
A lagoa. Foto: autor. |
Sou uma lagoa. Pelo menos eu era. Não sou mais. Talvez você se estranhe com isso. Afinal, como pode uma lagoa deixar de ser o que era? Bem, a história é comprida, mas é curta. Difícil é minha mente compreender como tudo ocorreu de uma forma tão fácil e rápida. Peço, portanto, vossa paciência, pois eu não tenho mais.
Tudo começou não sei quando. Mas, foi desse jeito. Só sei que eu existia. E haviam diversos afluentes que me alimentavam. De fato, três pequenos riachos daquela planície me sustentavam. Mesmo nos períodos de seca, eu conseguia preservar boa parte do meu volume de água estocado. A vida era boa. Haviam marrecos, garças, peixes e outras espécies de animais. Tudo corria bem até que uma criatura estranha apareceu.
Eles eram chamados de humanos. Não possuíam pelagem. Os primeiros que vieram não ficaram por muito tempo. Só utilizaram minha água e pescaram alguns dos meus peixes. Depois, partiram para o leste. Eles não me causaram nenhum mal. Pensei, portanto, que fossem criaturas gentis, amigáveis. Não podia imaginar o que me fariam no futuro.
Muito tempo depois, nem sei precisar a duração, apareceram homens de vestimenta estranha. Antes, vinham aqui e acolá. Apenas olhavam para mim. Nada faziam. Alguns tomavam banho, nada mais. Porém, um dia fizeram uma casinha próximo de mim. Era relativamente grande e não ficava longe de mim. Até ai, tudo bem. Porém, esses vizinhos, antes amistosos, acabaram se tornando meus carrascos.
Foi um processo rápido. De repente, arrancaram diversas árvores que haviam ao meu redor. Porque eles odiavam tanto elas? Pobres criaturas. Eu me senti desprotegida, sem vestimenta. Mas, a coisa foi piorando.
Um certo dia, passaram alguns homens no meu leito e fincaram estacas. Depois, montaram cercas com arame farpado. Foi doloroso! Porque fizeram isso comigo?! Eu não fiz nenhum mal a eles! Quanta ingratidão...
Pelo que entendi, eles estavam demarcando os terrenos "deles". Uma metade de mim era de Fulano e a outra metade, de Cicrano. De onde Fulano e Cicrano imaginaram que eu fosse propriedade deles? Por acaso eles me cultivaram durante milênios? Foram eles que prepararam as montanhas, as árvores e os rios que me sustentavam? Que ideia mais absurda. Não tinha nenhum cabimento.
Eu me tornei escrava. Eles exploravam minha água. Roubavam meus peixes. Cortavam minhas árvores. Sujavam minha água. Mas, ironicamente, brincavam e se orgulhavam de minha presença. Quanta hipocrisia! Eu me revoltei. Eu me desanimei. Perdi a vontade de lutar. E, sem a força dos meus afluentes, fui secando. Eu me sentia apenas como uma poça d'água no meio daquele deserto.
Mas, uma dia a coisa mudou. Um dia eu senti que não fui somente eu que se revoltou. Uma nuvem escura pairou e cobriu toda região. E durante alguns dias não víamos o sol. Nunca chovera tanto. E de repente, eu em senti um gigante.
E, de tão grande, destruí tudo que os humanos fizeram: o casarão, as pontes, as cercas. Não restou nada. Ninguém morreu, mas eu renasci. E desde então, parece que mudaram de dono. E o novo fazendeiro tinha conhecimento de ecologia. Ele era engenheiro e era casado com uma bióloga. Perfeito...para nós! Diziam que era possível combinar conforto com meio ambiente natural. Acreditavam em algo chamado sustentabilidade. Achei interessante.
Agora, minha mata ciliar está bem preservada e os peixes voltaram a povoar minhas águas. Agora me sinto bem. E o fazendeiro e a sua esposa também. Sua casa tem mais vida, os campos tem mais flores. A minha água é tão limpa que eles até podem bebê-la! Agora, estou feliz!
Alexandre Valério Ferreira
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