Diário do Catador de Lixo

Catador de lixo. Imagem: http://coletaseletivabonfim.blogspot.com.br/


De Alexandre Valério Ferreira


O CARRO ESTAVA pesado, mas disso Miguel não reclama. Quanto mais quilos, maior será a quantidade de alimento que levará para casa. Comida é coisa farta nesse mundo. Dinheiro para comprá-la, não. E ele sabe muito bem disso.
   Se Miguel pensou em ser catador, é evidente que não. Ninguém sonha com isso. Não é um caminho que se procura, mas que acaba encontrando por falta de opção melhor. Educação escolar ele não teve. Era tudo difícil na infância. Os pais, pobres, necessitavam do filho para ajudar nas despesas. E assim se faz o tal ciclo da pobreza. 
   Virar catador pode não ter sido uma escolha planejada, desejada, procurada. Ainda assim, foi uma decisão sua e ele a abraçou. Via naquele esforço físico descomunal uma expressão da máxima humana do trabalho, do valor do ser. Trabalhar dá dignidade ao homem, ainda que os outros insistam em negá-la aos catadores.
   Para Miguel, catar lixo é uma tarefa que exige várias técnicas. Um olhar aguçado para encontrar a matéria-prima. Também é preciso habilidade com as mãos. Um presteza sem igual para capturar - entre cascas de frutas, papéis higiênicos, embalagens de biscoito - aquilo que ele tanto necessita.
   Catar envolve também conhecimento de psicologia. Miguel precisa reconhecer as pessoas com má índole, cheias de ódio gratuito. Estes colocam cacos de vidro ou misturam vários resíduos que inviabilizam o trabalho de Miguel. Ainda bem que existem pessoas que são o oposto disso. Alguns até reservam à parte aquilo que ele precisa.
   Também é preciso jogo de cintura. Viver em uma sociedade marcada pelo racismo e por vários esteriótipos podem fazer dele um potencial criminoso aos olhos de alguns. Lidar com isso envolve maturidade para olhar além da emoção, convencendo as pessoas de que suas concepções são mais do que irrealistas, são desnecessárias e ruins.
   Ser catador também requer ser bom em matemática financeira. Se não tiver esse dom, pode ser facilmente burlado por quem compra os resíduos. Estar atento à balança, ter noção do peso só com o olhar, tudo isso é imprescindível para um catador sobreviver nesse mundo hostil e desonesto.
   Também precisa ter compreensão de física. Saber onde colocar cada material para deixar o carrinho equilibrado. Quando se avança nessa habilidade, é possível descer uma ladeira brincando. Alguns fazem do carrinho uma espécie de gangorra. É preciso se divertir de vez em quando.
   Miguel tornou-se também veterinário. A cachorra Pretinha o segue por onde ele vai, o que é bom e ruim ao mesmo tempo. Volta e meia, um cachorro tenta atacá-la (ou a ele também). Estar prevenido é essencial. Uma barra de ferro ou chicote podem ajudar.
  Além disso, Miguel desenvolveu boa musculatura. Não que tome suplementos. Afinal, nem o essencial possui, quanto mais complementos. A questão é que precisa de muita força para carregar o carro ladeira acima e abaixo.
   Ser catador é conhecer cada rua, cada beco, ver a cidade antes do sol nascer, ter medo do medo das pessoas, passar fome, fugir de cachorros, não se entregar aos vícios, ter esperança. É, antes de tudo, ver no lixo uma forma de se refazer, mesmo diante das intempéries de uma realidade carregada de injustiças.







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