O Imóvel Desmobiliado

Foto: https://asportasdapercepcao.wordpress.com/2011/08/24/a-sala-sem-nada/



DESMOBILIAR é uma atividade cansativa. Não digo apenas do esforço físico, o qual para mim é especialmente difícil, tendo em vista meu estado sedentário. Desisti de tanto pagar a academia e não ir. Mas é porque é tão chato malhar. 
   Eu senti nos lombos a ausência de mais aptidão física. Porém, o que mais me deixava exausto eram as lembranças. Desmobiliar a casa é uma espécie de reencontro. Debaixo do carpete estão sujeiras milenares. Marcas de outras eras. Não que fôssemos daqueles que demoram séculos para dar uma geral na casa, mas, sim, somos daqueles que demoram séculos para dar uma geral na casa. É muito chato. Você sabe disso. Deixo esse trabalho para os amantes desse esporte sádico. 
   Mas, sim, a casa estava cheia de memórias e, nesse desmonte, as reencontro. É o dinheiro sumido, os botões que caíram, um pedaço de batata-frita que nenhum ser vivo ousou tocar, são alguns daqueles Pokemons que vinham nas caçulinhas da Antártida, tudo que se pode imaginar (ou não). 
   Engraçado como nos acostumamos com aquelas lembranças perdidas, enterradas pela rotina (e pela preguiça de procurá-las, é claro). Desistimos delas. Talvez nos console saber que a pulseira perdida ainda está dentro de casa. Não se sabe onde, mas ainda está em nosso reinado. Portanto, tecnicamente, ela não está perdida. Só a deixamos num local de desconhecimento da maioria das pessoas, incluindo os proprietários delas.
   A mudança trouxe à tona lembranças. Foram quase 30 anos da minha vida nessa casa. Claro, trocamos as lâmpadas inúmeras vezes e as paredes já foram pintadas com todas as cores possíveis criadas. Ainda assim, aquele espaço de 100 metros quadrados era nosso espaço de 100 metros quadrados. 
   As paredes viveram junto conosco. Testemunharam nossas histórias, tanto nos momentos bons quanto nos ruins. Isso me lembra muito "A Casa", de Natércia Campos. Ela começa o livro por citar um trecho daquela canção da casa, que não tinha teto, não tinha nada. Mas o importante é que ela fora construída com muito esmero.
   Uma professora de Português sempre se encantava com essa música. Afinal, que contraditório: uma casa que não tinha nada, mas que fora construída com muito esmero ou zelo. Como assim? Talvez a raposa que conversou com o pequeno príncipe tivesse a resposta: o essencial é invisível aos olhos.
   Não sei como essa casa foi construída. Quando meus pais vieram para cá, ela já estava pronta. Na verdade, não fomos os primeiros a nela habitar. Sim, ela já havia sido feita. O que não estava pronto era minha existência. Debaixo desse telhado é que minha vida veio a se desenvolver. E admito: foi com muito esmero. Agradeço aos meus pais.
   Talvez eu queira chorar um pouco. Talvez não. Não faz sentido chorar por uma casa. Pareço até minha mãe, que sempre teve o hábito de conversar com animais e tratar objetos como se fossem criaturas sentimentais. Quem sabe não tenha sido nada mais que uma transferência de seu próprio ser e eu não percebi. 
   Bem, terminei de levar as coisas. É hora de seguir em frente. A casa, que não sei se foi feita com esmero, está limpa e pronta para testemunhar outra saga familiar. Espero que seja muito feliz. Adeus.


De Alexandre Valério Ferreira

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