A Crise do Ornitorrinco

Imagem: www.peregrinacultural.wordpress.com


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HOUVE um momento em que eu sabia quem eu era. Ou pelo menos achava que sabia. Mas, eu me enganei. Pensei ser uma coisa, quando na verdade não o era. Agora, estou numa encruzilhada e a minha indecisão parece não ter fim. Nenhum caminho me agradam. Nada me agrada. Estou aflito.
   O que eu sou? Seria uma ave ou um mamífero? Olhei para os outros em busca de respostas. Tentei fazer amizade com os patos. Eu sentia-me como parte deles. Eu achava bonito voar, mas não podia (como eles); tinha bico (como eles) e flutuava na água (como eles, também). Sim, eu sou um pato! Eu sempre soube!
   Ao me aproximar deles, porém, levei um balde de água gelada. Pior do que isso, fui esfaqueado por olhares enviesados, carregados de desprezo. Parecia que eles olhavam para uma aberração da natureza. Um mutante, talvez. Foi muito doloroso.
   Se não sou um pato, o que eu sou, afinal? Ah, já sei. Devo ser parente dos castores. Somos mamíferos, temos corpos e caudas similares e vivemos nadando. Sim! Finalmente, eu me encontrei. Agora sei onde é meu lugar. Sou um castor!
Assim, com grande euforia, como se tivesse encontrado um tesouro perdido, fui visitar os castores. Mas, para meu desencanto, eles menosprezaram minha existência. Entre os olhares na minha direção, sussurravam e davam risadas entre si. Nenhuma palavra foi dita. Não era preciso. Eu havia entendido o recado: eles me desprezavam. Não, eu não sou um castor também. 
   A partir daí, a agonia tomou conta de mim. Não conseguia me encontrar. Eu tinha características de ave, mas não era uma. Tinha similaridades com os mamíferos, mas também não era como eles. O que eu era, então? Ajudem-me, por favor!
   A angústia da crise de identidade consumiu minhas energias. Não tinha motivação para fazer nada. Tudo era cinza e sem graça. Já que eu estava condenado à solidão, ao fracasso e à insignificância, do que adiantava lutar por qualquer coisa? Eu sempre perderia mesmo. Melhor não sofrer mais nenhuma frustração. 
   Eu olhava para os castores com inveja. Eles eram tão habilidosos. Conseguiam fazer represas incríveis. Imagine só: eles controlavam o fluxo dos rios! Eu jamais conseguiria fazer algo do tipo. Era apenas um ornitorrinco, seja lá o que isso realmente queira dizer.
   E os patos são tão graciosos. Nunca vi tamanha beleza. Sempre estão secos e prontos para uma boa foto. Fazem danças interessantes. Sabem fazer mergulhos perfeitos. Suas penas são de tonalidades belíssimas. Jamais serei como eles.
   Odeio eles. Queria que morressem. Apenas desgraçam minha vida. Fazem zoada e chamam atenção para sua felicidade. Esquecem que muitos nunca saberão o que é ser alguma coisa. Não, eles não se importam. Não sou ninguém para eles.
   Eu precisava de ajuda. Mas, onde encontrar? Diziam que os bilbies (ou macrotis) eram bastante inteligentes. A sabedoria deles poderia ser a minha salvação, pois do jeito que eu estava, acabaria me matando. Não queria chegar nesse ponto.
   O bilby me olhou com calma. Cheirou-me do bico ao rabo. Foi constrangedor. Seguiu-se por um longo silêncio. Olhei para ele, para os lados, pensei que ele estava bêbado ou algo assim. Daí, me disse:
   - Todo mundo é um gênio. Mas, se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore, ele vai gastar toda a sua vida acreditando que é estúpido.

Bilby. Imagem: wikipedia.com

   Achei as palavras bonitas, mas não entendi bem. Quis perguntar ao bilby o que ele queria dizer, mas ele já havia sumido. Era só eu e as árvores. O vento fazia a floresta ronronar. Fui para casa e, mesmo confuso, sentia que estava para achar meu caminho.
   No dia seguinte, continuei pensando naquelas palavras. Fui para a cachoeira. Observei, então, os peixes. Como eles eram belos. Nunca entendi direito sobre como eles eram capazes de respirar debaixo d´água. Tenho inveja deles.
  Espere. Agora tenho inveja dos peixes também? Mas, nunca pensei em ser como eles. E a borboleta? Quem voa de forma graciosa como ela? Quem consegue pular como o canguru? Quem é capaz de se arrastar como as cobras? Não sou nenhum deles e nem pretendo ser. Ainda assim, eu admiro o que são. Será que eles sentem-se felizes pelo que são? Será que a cobra deseja ter asas ou o canguru tem inveja das brânquias dos peixes? 
   Agora eu entendo. Minha forma de encontrar um caminho estava completamente errada. Em vez de encontrar o certo, eu apenas reclamava da possibilidade de estar no errado. Comparava-me sempre com os outros. Mas, todos somos diferentes e únicos. Assim, nunca eu encontraria o meu caminho olhando o caminho dos outros.
   Posso me encantar com as asas das gaivotas, mas não preciso ser como elas e nem elas como eu. Por que, então, eu me angustio tanto com o que não tenho? Talvez alguém queira ser como eu? Não tem como saber. Não faz sentido nenhum ficar me comparando com os outros.
  Eu entendi agora o lance do peixe. Se alguém diz que inteligência é subir em árvores, então ele é um tolo. Mas, não é verdade que um animal que consegue escalar as plantas não consegue sobreviver mais do que alguns minutos debaixo d´água? Não estaria o peixe na vantagem? E que é vantagem? 
  É esse maldito desejo de me comparar com os outros. Por isso não entendi quem eu era. Não o poderia, pois meus olhos não conseguia enxergar uma verdade simples: que eu não sou os outros e nem eles são eu. Somos todos gênios. Somos todos uma espécie rara em extinção. Sim, eu sei quem sou: eu sou um ornitorrinco e moro na Austrália!


De Alexandre Valério Ferreira

 
 

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