Diário da Antropomorfização
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ERA uma vez um garoto que gostava de antropomorfizar tudo ao seu redor. Do seu ponto de vista, as maçanetas eram rostos de criaturas narigudas, as nuvens eram coelhos, os carros tinham personalidade e as tomadas, sentimentos.
Sua mente criou uma obsessão por encontrar conexões, tentando ver rostos onde não haviam. Era assim que achava alguns carros sorridentes e outros, depressivos. O fusca era o mais carismático de todos. Tinha doces olhos arredondados e um sorriso gigante formado por seu para-choque. Mais amigável do que ele não havia no mundo.
Por estarem todos os objetos aparentemente vivos, o garoto se apegava muito a eles. Sofria vê-los sendo esquecidos. O banco no quintal. O guarda-chuvas na garagem. Tão solitários.
Não suportava a ideia de jogá-los fora. Seu quarto só não virou um amontoado de entulho porque sua mãe sempre o limpava sem a permissão dele. Quando tornava da escola, descobria que seus amigos já não viviam mais com ele.
Todos eram especiais. A caneta não era só uma caneta. Sentia compaixão dela e não era capaz de descartar o já inútil objeto sem tinta. Para ele, jogá-la no lixo seria uma atitude similar a se livrar dos idosos.
Pobre garoto, sofria cada vez mais, pois a sociedade se tornava cada dia mais descartável. Nada era feito para durar. Tudo era líquido, esquecível, volátil. Os rostos nas tomadas, nos copos e nas casas lhe rogavam ajuda. Mas o que ele podia fazer? Era apenas um na multidão. Não podia fazer apenas o que desejava. Pior ainda, sentir compaixão de casas e canetas lhe gerava constrangimentos, pois afirmavam que ele era esquizofrênico.
Ainda mais profunda era a sua relação com os animais. Se os objetos tinham rostos, os animais tinha personalidade, opiniões, sonhos e desejos. Cada um com seu jeito de ser. Ele pensava no que os animais pensavam. Sentia a solidão e a dor deles. Quando os via presos, angustiava-se.
Até hoje sinto pena daquele garoto. Não sei se ele era tolo ou sábio. Toda aquela compaixão e uma empatia sem igual, eram tão raras nos dias atuais. Às vezes, o limite entre a sabedoria e a loucura é muito tênue.
De Alexandre Valério Ferreira
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