Não sou, estou



De Alexandre Valério Ferreira


PARA ALGUNS, ela era tímida. Para outros, extrovertida. Havia quem dissesse que a conhecia bem, pois eram amigos de longa data. Tinha até aqueles que a odiavam; diziam que era fingida, hipócrita, uma onça. Ela era todos os adjetivos e ao mesmo tempo, nenhum deles.
   Se tentassem descobrir quem ela realmente era, estariam muito frio quando quente estivessem da resposta. Porque, na medida que a alcançassem, acabavam perdendo sua essência. Nas profundezas do encontro, a verdade escorregava na ilusão da descoberta.
   Tolice era essa busca, portanto. Pois como dizer que encontrava sua essência quando esta se distribuía em tantas outras. Que era a essência? Um Eu interior essencial, matriz de todos os outros Eu que se distribuía mundo afora? Quem, afinal, realmente era ela?
   Pergunta difícil. Tão complicada quanto aquela questão fundamental: o que é realidade? É que é e o que não pode deixar de ser? Aquilo que é, independentemente de a querermos ou não? Então, quem realmente era aquela garota, se ela poderia ser tantas coisas ao mesmo tempo?
   Era filha, amiga, namorada, estudante, motorista, projetista, cliente, funcionária, diretora, subordinada, grande, pequena, tímida, fofoqueira, extrovertida, generosa, pão-duro, companheira, inimiga, amante dos animais, misantropa, humana, fotogênica, fotógrafa, escritora, ignorante?
   Como dizer que um desses papeis era sua essência se todos dela se compunham? Se em todos um pouco dela se conhecia? Ainda assim, na medida em que se conhecia um desses papeis, outros ficavam escondidos nas sobras. No fundo, só se conhecia uma parte de sua realidade, do fundo do seu ser. 
   E, apesar de todos esses personagens viverem em um único ser, nunca se davam por visto no mesmo ato teatral. Ora era extrovertida com um, ora era impaciente com outro. Ora uma eterna apaixonada, ora um insuportável pessoa esnobe. Tudo ali, dentro do mesmo crânio, transmitido pelos mesmos neurônios, transfigurado no mesmo corpo de carne e osso.
   Ela não era, estava. Estava sendo isso ou aquilo. Como um ser líquido, cobria o conteúdo, adaptava-se a ele. Alguns, com mais velocidade do que com outros. Era mais viscosa em alguns e menos em outros. De alguns, queria presença; de outros, distância. Eram suas escolhas que definiam quem ela era. 
   Sim, as motivações. Por que dizer isso para sicrano e aquilo para fulano? Por que escolheu este caminho ao invés daquele? Por que foi honesta agora? Por que se omitiu ali? Por quê? Eram desses questionamentos que se revelava um pouco do que dentro dela crescia. As vontades precisam de desafios para se exporem.
   Ela estava, não era. Não era só funcionária ou tímida. Não era só uma garota de cabelos de fogo. Ela estava funcionária. Ela estava tímida. Ela estava garota de cabelos de fogo. Tudo era um estado, não uma eternidade. Pois, em essência, ela era uma metamorfose ambulante em um mundo eternamente mutante.

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