Os peregrinos da Guilherme Rocha



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Por Alexandre Valério Ferreira



Das profundezas da terra, eles surgem aos montes. Parecem formigas saindo de um formigueiro. Um exército sem general. Um oceano de cabeças, sonolentas, cansadas, das mais diversas cores, formatos e tipos de cabelos. Expelidos das cavernas do metrô que se esconde sob a praça José de Alencar.
Ao mesmo tempo e no mesmo local, alguns ônibus compridos como serpentes expelem tantos outras formigas. O vazio e o silêncio da praça agora vai se enchendo da força de trabalho humana portadores (ou não) de valiosas carteiras azuis. Proletariados de todas os pontos da região metropolitana de Fortaleza, absorvidos pelo vasto e mal pago mercado de trabalho do setor de comércios e serviços.
  Uma multidão vai tomando forma. Uma tsunami de cabeças aglomeradas por um destino comum. Parece unidos. Porém, são apenas desconhecidos. Um conjunto de estranhos que, por alguns minutos, percorrerão juntos a mesma trabalhosa rota: rua Guilherme Rocha, no centro comercial de Fortaleza. Na cidade velha.
  Como o sangue bombeado através das artérias e capilaridades, aquela multidão vai preenchendo as vias. Dando outra cor e ritmo a um mundo apagado pela escuridão da noite e do abandono. As ruas - na madrugada apropriada por quem foi desapropriado dos seus direitos sociais - agora começa a ganhar vida [econômica]. Uma outra cidade vai clareando no amanhecer dos dias úteis. Um nova Fortaleza surge.
  Olhando a Guilherme Rocha de longe, pode-se facilmente pensar que está vindo um grande exército pronto para a batalha. Ou, quem sabe, uma multidão de peregrinos em uma marcha religiosa. Talvez sejam manifestantes exigindo reformas sociais.
  Porém, diferente desses casos, estão apenas indo para o trabalho de cada dia. Alguns aceitaram passivamente a sua realidade construída. Rezam quase religiosamente para quitarem as suas contas, para ter o prazer de uma viagem ou de um churrasquinho no fim de semana.
  Pela rua, estranhos andam lado a lado quase se tocando, como se fossem amigos de longa data. Talvez alguns, de fato, tenham percorrido aquela rota tantas e tantas vezes juntos sem nunca ao menos trocarem olhares ou dizerem um 'bom dia'.
  À medida que vão avançando e se apossando da Guilherme Rocha e seus afluentes, os peregrinos perdem força. A viscosidade vai diminuindo, pois as lojas vão gradualmente ficando impregnadas pelos seres atomizados que a sustentam de fato. O fluxo humano vai ganhando velocidade. Menos pessoas para se esbarrar ou interagir.
   Guilherme Rocha, dura como pedra, ganha força na central Praça do Ferreira. O descampado da selva de concreto faz lembrar de que existe um mundo maior do que as vielas pelas quais os peregrinos atravessam. E o badalar da Coluna da Hora alerta os peregrinos sobre o risco de se atrasarem para a labuta diária.
  Depois da praça, a multidão se afunila novamente e percorrem o trecho final (ou inicial, dependendo do ponto de vista) da Guilherme Rocha. A peregrinação, mesmo não sendo religiosa, vai finalizar perto da Igreja do Rosário, na histórica Praça dos Leões. Vigiado por olhares felinos e urros silenciosos, a multidão desemboca na Rua Sena Madureira.
  Assim, termina o percurso de cerca de 780 metros da Guilherme Rocha (ao todo, ela possui 1,6 quilômetro). Mas, daqui a 8 horas, o fluxo humano tomará o sentido oposto. No fechar das portas metálicas das lojas, os trabalhadores, exaustos, retornam para seus lares. Absorvido pelas serpentes sanfonadas ou pelos formigueiros ferroviários, vão dormir e renovar as forças para mais um dia de luta amanhã, a não ser que o amanhã seja um domingo.




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